Entrevista: CARLOS HENRIQUE MASCARENHAS SILVA | Obstetra, 47 anos
Especialista em tratamentos na gravidez realiza cirurgia fetal em Belo Horizonte
Foram anos e anos de estudo e atendimentos até o obstetra Carlos Henrique Mascarenhas Silva comemorar, enfim, o sucesso da primeira cirurgia fetal realizada no Mater Dei. Operado em abril, o bebê, diagnosticado com mielomeningocele, uma má-formação na coluna, recebeu todos os cuidados ainda na barriga da mãe. O procedimento não representa uma vitória apenas para esta família, mas para outras tantas pacientes que antes precisavam buscar ajuda em outros estados ou até fora do país. E mais, as cirurgias reduzem o número de crianças que nascem prematuras e com danos irreversíveis. “Queremos dar o melhor suporte antes do parto para que os bebês, ao nascerem, não sejam submetidos aos problemas da prematuridade”, pontua o coordenador do serviço de medicina fetal do hospital.
Por que trabalhar com medicina fetal?
Sempre gostei muito de obstetrícia e logo cedo decidi que queria trabalhar com medicina fetal. Na época em que estudava, ainda estava começando a especialidade, baseada em ultrassom. Fiz residência no Mater Dei em ginecologia e obstetrícia e depois passei o ano de 2000 em Londres, onde existia o serviço de referência no mundo todo em cirurgia fetal. Nesse período, tive contato com cirurgia no útero em casos muito específicos, como para corrigir um problema muito comum em gravidez gemelar (de uma placenta só), quando existe comunicação de sangue entre as crianças. Quando voltei, passamos a fazer aqui todos os procedimentos, tanto ultrassom quanto exames invasivos como amniocentese, que retira líquido amniótico ao redor da criança, e biópsia da placenta.
Na época, qual era a maior diferença entre a realidade da Inglaterra e a do Brasil?
A grande diferença era o acesso aos equipamentos. Tínhamos a mesma qualidade técnica de lá, mas os valores envolvidos eram muito altos para operar, especificamente. Então, no início, não conseguíamos fazer nenhuma cirurgia. Utilizávamos métodos paliativos de resolução de problemas, como, por exemplo, fazer o que se chama de drenagem no líquido amniótico quando havia comunicação de sangue em gravidez gemelar. Isso não era um tratamento definitivo, mas ajudava a aumentar a idade gestacional, logo o neném nascia menos prematuro. Isso mudou radicalmente de cinco anos para cá. A tecnologia para ter acesso à criança dentro da barriga, sem levar à interrupção da gravidez, se tornou mais acessível e conseguimos adquirir os equipamentos necessários.
Como o senhor se preparou para iniciar as cirurgias no Mater Dei?
Além de estudar bastante, fiz em janeiro estágio de um mês na Bélgica, que também se desenvolveu muito em cirurgia fetal. Era no hospital da universidade de Leuven, que fica a meia hora de Bruxelas. Não podemos operar fora do Brasil, mas me envolvi com o dia-a-dia do serviço e acompanhei as cirurgias. As técnicas são as mesmas do Mater Dei, a diferença até então era o desfecho do tratamento, que é a cirurgia em si, e o acompanhamento no pós-operatório.
Qual foi o resultado do primeiro procedimento?
Fomos o primeiro hospital em Minas Gerais a realizar uma cirurgia fetal. O neném nasceu na época certa, com 37 semanas, e já teve alta. O resultado foi muito bom, ele está movimentando perfeitamente as pernas.
Como o senhor se sente diante disso?
Feliz da vida.
Por que as cirurgias fetais são necessárias?
Se não tratarmos as crianças, elas vão nascer prematuras e com patologias que vão durar a vida inteira. De 80% a 90% das crianças com mielomeningocele que não são operadas ainda no útero vão precisar de comunicação na cabeça para drenagem do líquido, que chamamos de derivação, por causa da hidrocefalia. Quando entra a cirurgia, o número inverte: apenas 10% precisam disso. A grande maioria vai conseguir se locomover normalmente, por isso compensa operar durante a gravidez. Já no caso da comunicação de sangue entre crianças em gravidez gemelar, é altíssimo o risco de óbito dos dois fetos se nada for feito. Quando operamos, existe 75% de chance de os dois bebês nascerem vivos e saudáveis.
Em quais outros casos a intervenção é indicada?
Em caso de algum defeito cardíaco, podemos corrigir implantando um cateter. A hérnia diafragmática, quando o conteúdo abdominal vai para dentro do tórax e prejudica o crescimento do pulmão, é outra doença que podemos tratar dentro da barriga. São esses os casos mais frequentes.
Com quanto tempo de gravidez as cirurgias fetais devem ser realizadas?
Entre 22 e 26 semanas. Por isso o diagnóstico precisa ser feito no tempo certo, senão o dano cerebral pode ser irreversível.
Isso reforça ainda mais a importância do pré-natal.
O pré-natal é fundamental, porque está ligado ao cuidado obstétrico, que é fazer um rastreamento para identificar risco de doença materna ou fetal. Em até 14 semanas chegamos aos maiores diagnósticos, que levam ao risco de morte da mãe ou da criança. Por isso, falo para fazer ultrassom o mais precoce possível – por volta de oito a nove semanas - para descobrir a idade da gravidez e o número de crianças. Depois, recomendo outro exame por volta de 13 semanas e, se puder escolher mais dois momentos, de 20 a 24 semanas e depois por volta da 36ª semana. Isso é o mínimo. Utilizamos ultrassom para fazer avaliação do feto e traçar um prognóstico de como a gravidez vai evoluir, se existe risco de parto prematuro, por exemplo. Entre as pacientes de risco, conseguimos diagnosticar doenças que podem ser tratadas com cirurgia. Brinco com as gestantes que elas fazem ultrassom para dar um bom resultado, mas, se houver alguma patologia, hoje estamos preparados para fazer de tudo.
Podemos dizer que os procedimentos são seguros?
O número de morte materna é praticamente zero. Morte fetal está mais relacionada à prematuridade do que a um problema na cirurgia. Então, podemos dizer que são muito seguros, quando comparamos com os danos que essas doenças causam ao indivíduo. Se não operarmos, vamos ter crianças prematuras extremas, com 26 semanas, que é o limite da viabilidade.
Como essas mulheres chegam ao serviço do Mater Dei?
Trabalhamos com uma rede grande de obstetras, que encaminham as suas pacientes, e já existe o pré-natal de alto risco, com mulheres que são acompanhadas pela equipe do próprio hospital. Divulgamos também o curso de casal grávido, que recebe por volta de 300 casais por mês.
Quantos profissionais fazem parte do setor de cirurgia fetal e quantos procedimentos podem ser realizados por mês?
Somos oito médicos que trabalham com medicina fetal e já estamos preparando mais profissionais. Precisamos investir alto nisso. Em relação à capacidade de atendimento, não existe limitação. Conseguimos atender à demanda que aparecer. À medida que vamos falando, vai surgindo um aumento natural da demanda, porque as mulheres descobrem que não precisam sair do estado, podem fazer o tratamento em Belo Horizonte. Atendemos também pacientes de fora, mas o grande desafio é fazer com que elas cheguem aqui o mais cedo possível. Recebemos muitas grávidas quando não tem como fazer mais nada definitivo, só paliativo.
Pelo que o senhor observa, qual é o maior medo das pacientes?
Todos nós, quando vamos ser pais, imaginamos um filho perfeito. Então, o primeiro baque é saber que a criança tem algum problema, mas por outro lado, mostramos para o casal que o filho deles merece todo o investimento e suporte possíveis. Mostramos que a doença é passível de tratamento e que o bebê terá melhor qualidade de vida. Oferecemos apoio psicológico e já conseguimos direcioná-los para os médicos que vão tratar as crianças depois do nascimento, se assim eles quiserem. O resultado de uma cirurgia fetal tem tudo a ver com a qualidade do pré-natal e do atendimento depois do procedimento, por isso continua acompanhando os pacientes.
Como é para o senhor trabalhar com fetos?
É um grande desafio, porque lidamos com indivíduos que não vemos, então temos que interpretar o que eles nos passam através de exames. Acontece que, de tanto ver as imagens, passamos a conhecer muito bem os nenéns e podemos até falar se parecem com o pai ou a mãe. E dessa forma criamos uma relação muito íntima com esses meninos.
Reproduzido conforme original do Jornal Estado de Minas (página 8 - Caderno Feminino - 29.07.2018)
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